quarta-feira, 26 de março de 2008

Capitulo 20: Parnaíba


A cidade do Delta, também conhecido como b2-4ac

Parnaíba fica na foz do rio de mesmo nome e é muito conhecida por ser a base de saída para visitas ao único delta em mar aberto das Américas. O Delta do Parnaíba é considerado uma das maiores belezas naturais do Brasil, mas infelizmente isso não serve de consolo para levantar a auto-estima dos piauienses, pois a maior parte dele fica no lado maranhense da fronteira.
Pensando bem, essa é uma das fronteiras mais anatomicamente corretas do planeta, pois se partirmos de um “cu genérico” e percorrermos a trilha rumo ao norte, há grandes chances de desembocarmos num exuberante “delta” . Ou seja, o “Cu-do-Mundo” e o “Delta do Parnaíba” formam a dobradinha perfeita para uma noite pecaminosa. E, ao contrário da maioria dos deltas que encontramos por aí, o do Parnaíba ainda mantém a sua mata virgem. Ao fazermos um passeio de barco pelos rios que formam esse ecossistema único, é possível ver uma rica fauna, dunas, praias, lagoas e mangues. Dizem que a paisagem se modifica a cada momento.
Depois de encarar milhares de quilômetros de estradas empoeiradas, finalmente estava chegando no tímido litoral do Piauí, que é bem escondidinho e apertado, como qualquer cu respeitável. A costa piauiense é a menor do Brasil , se resumindo a míseros 70 quilômetros de praias, mais ou menos o mesmo que o litoral da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo tendo tão pouco para conhecer, estava ansioso para dar um mergulho e “pegar uns jacarés”, pois até aquele momento não havia tido o prazer de ver sequer uma cachoeira. Ou mesmo um riacho, como me fez crer o velho da bicicleta.
A viagem foi rápida. Chegamos em Parnaíba às dez horas em ponto. Quando desci do ônibus, esbarrei com quatro motoristas de moto-táxi se digladiando para me levar. Um deles chegou a me segurar pelo braço, mas logo soltou quando virei e disse com a minha simpatia nota dez:
– Porra, maluco, eu quero mijar! Se você não me soltar, vou começar a achar que tu quer ir lá também para dar uma “sacudidinha”.
Felizmente os malas tinham sumido quando saí do banheiro. Provavelmente conseguiram caçar outro mané. Resolvi, então, prestigiar os mais educados, que aguardam os passageiros em seu devido lugar. O piloto confirmou que o hotel que eu tinha escolhido no guia era bom e barato, e lá fomos nós, cortando as largas avenidas de Parnaíba. Acho que em nenhum outro lugar do mundo o transporte da rodoviária até o hotel seria tão prático e barato. Cheguei à conclusão de que estava completamente viciado nos moto-táxis piauienses.
Me surpreendi ao ver muitas referências ao ex-governador Mão Santa. A cada esquina que dobrávamos havia um Centro Esportivo Mão Santa, uma Casa de Saúde Mão Santa, um Educandário Mão Santa, ou até mesmo um “Cemitério Mão Santa”. Quase tudo na cidade foi batizado com o nome do cara.
Pesquisando o porquê de tantas homenagens ao ex-governador, descobri que o homem é uma verdadeira entidade. Para começar, Mão Santa conseguiu a façanha de se eleger senador logo depois de ter o seu mandato de governador caçado. O cara teve suas falcatruas desmascaradas, mas mesmo assim foi eleito pelo povo piauiense como o seu representante no Senado Federal. Com esse feito, ele se igualou a messias como São Barbalho e São Magalhães. Mas não é só isso. Também fiquei sabendo que o senhor Mão Santa é uma verdadeira fábrica de piadas. Foram quase dois mandatos repletos de factóides, gafes e frases memoráveis.
Ele tinha o costume de ir de casa para o trabalho a pé. Encarava quatorze quilômetros de caminhada debaixo dos dois sóis que castigam Teresina. Isso já nos dá uma noção do aroma exalado pela autoridade . Outros detalhes de sua higiene, como mau hálito, caspa e flatulência também são vastamente relatados em conversas de bar. O Rio convive com as balas perdidas, mas o Piauí também sofre muito com os “perdigotos perdidos” do Mão Santa, que podem atingir qualquer desavisado que fique próximo de seu palanque. Há quem diga que o verdadeiro motivo de sua cassação tenha sido uma manobra norte-americana, pois o Pentágono declarou que Mão Santa era uma arma química ambulante e garantiu que invadiria o Piauí caso ele não abandonasse o cargo.
Dentre as suas maiores realizações, gostei mais do Spa Santo. Ele transformou uma colônia de férias para funcionários públicos em clínica de emagrecimento, onde as mulheres carentes do Piauí poderiam emagrecer e ficar mais gostosas. Segundo o ex-governador, elas não sofreriam mais de carência depois que exibissem seus novos corpos esbeltos pelas ruas do Piauí. Como o orçamento do estado é muito modesto, depois do Spa não sobrou muito dinheiro para pagar os funcionários e o governador acabou atrasando os salários. Isso o deixou numa posição delicada. Mesmo assim, Mão Santa não perdeu o seu talento humorístico. Durante uma manifestação, ele respondeu a uma funcionária pública revoltada: “Não reclame! Sua menstruação também atrasa!”
Depois de uma rápida leitura de suas aventuras, comecei a achar que Mão Santa era realmente uma criatura especial. É como se todo o humor do Piauí estivesse concentrado nesse ser único, um verdadeiro orixá da tosqueira. Comecei a pensar em todas as situações engraçadas que havia vivido durante a peregrinação e fiquei em dúvida. Será que esta “mão invisível” que colocava e removia os problemas de meu caminho tinha alguma relação com a “mão santa” de Mão Santa? E a famosa pintura da “mão de seis dedos” do Parque das Sete Cidades? Seria alguma espécie de sinal místico? Tudo começou com um fetiche meu, quase uma maluquice, mas a cada coincidência passava a acreditar mais no destino e nas forças ocultas que regem aquele pedaço de terra esquecido. A ansiedade de estar quase concluindo a minha jornada se misturou com milhares de dúvidas sobre os mistérios do Piauí. Só consegui esfriar a cabeça depois de chegar ao hotel e tomar uma ducha fria.
Apesar da aparência de limpeza do quarto, uma barata saiu pelo ralo e escalou a minha perna enquanto eu tomava banho. Se isso tivesse acontecido seis dias atrás, certamente ficaria completamente enojado, ou até mesmo assustado. Mas, para minha surpresa, reagi com muita calma e sangue frio. Pisei na barata com meu pé descalço e empurrei seus restos mortais de volta para o ralo. Percebi que além de me ensinar muito espiritualmente, a Transpiauí também havia me deixado mais forte psicologicamente. Havia me transformado em uma espécie de Rambo, capaz de ser jogado em uma fossa repleta de sanguessugas e permanecer calmo .
Já eram quase onze da noite e estava muito cansado. A melhor opção depois do banho seria ligar a TV e dormir. Acontece que a televisão do quarto era muito antiga, para não falar jurássica. Ninguém estranharia caso ela tivesse sido desenterrada em algum sítio arqueológico da Serra da Capivara. Demorei uns cinco minutos só para descobrir como ligá-la. Depois, fiquei um tempão tentando ajustar a imagem, sem sucesso. Achei mais proveitoso arriscar uma saída e procurar um lugar para comer algo decente.
O recepcionista do hotel disse que poderia encontrar bares e restaurantes na “beira-rio”. Dava para ir a pé, era só descer a rua e caminhar cerca de 400 metros. Fui andando no meio do escuro, quase não havia postes de luz no caminho. O barulho de sapos, grilos e outros animais brejeiros aumentava a cada passo que dava. Nenhuma alma viva na rua. Se o cara não tivesse me indicado o caminho com tanta precisão, provavelmente já estaria me sentindo perdido. Quando cheguei no final da rua, realmente havia um rio, ou melhor, um mangue. Um pouco mais à frente, havia um esboço de movimento. Ao me aproximar, vi que era um boteco com três pessoas assistindo TV e tomando cerveja. Todos os outros bares e restaurantes da rua já estavam fechados. Mesmo assim não desanimei, afinal faltavam apenas mais algumas horas para que minha peregrinação chegasse ao fim. Pedi uma cerveja e o cardápio. Bebi e comi muito, celebrando solitariamente esta façanha que seria incompreensível para qualquer pessoa normal.
Por volta de uma hora da manhã, voltei para o hotel caminhando certo por linhas tortas. Tomava cuidado para não tropeçar em buracos que não existiam. O último obstáculo a ser vencido antes de concluir minha peregrinação era uma iminente ressaca.

Extraido do Livro:
Transpiauí, uma peregrinação proctológica
Autor: Mr Manson, Editora: Churros, ISBN: 8598289019, Ano: 2004, Edição: 1.

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