segunda-feira, 31 de março de 2008

Capitulo 21: Pedra do Sal


E no final de meu caminho, um farol encravado
na rocha sinalizava meu próximo rumo
Acordei às oito da manhã, sozinho e, milagrosamente, sem nenhuma fagulha de dor de cabeça. Pelo visto, o Piauí não havia me transformado apenas em uma espécie de Rambo. Também virei uma espécie de Jaguar , com a mais completa imunidade ao álcool que um fígado pode alcançar.
Tomei banho e me vesti para o café da manhã. Me entusiasmei ao ver tanta fartura: frutas, pães, bolos, sucos, queijos... Como já estava tudo incluso na conta, aproveitei este raro momento de boca-livre de minha peregrinação. Comi como se estivesse fazendo a última refeição antes de ser executado na cadeira elétrica. O que de certa maneira fazia sentido, pois sabia que, ao deixar o Piauí, algo em mim teria mudado.
Andei até o centro da cidade à procura de algum transporte até a Pedra do Sal, a praia mais conhecida do “imenso” litoral piauiense. Não queria me render ao moto-táxi logo de cara, ainda tinha esperanças de achar algum ônibus ou van que me levasse até lá com um pouco mais de conforto.
O centro estava fervilhando, como o de qualquer outra cidade com mais de 200 mil habitantes no início da manhã. Não vi nenhum prédio alto, mas Parnaíba mostrou ser uma cidade bem desenvolvida, com muito comércio e belos casarões antigos. Logo cheguei na ponte que leva até a praia e vi um ônibus com a placa “Pedra do Sal” parado no cruzamento. Saí correndo para alcançá-lo. Por sorte os motoristas piauienses mostraram ser bem mais educados que os cariocas. Ao me ver correndo, fez questão de esperar, mesmo bloqueando o trânsito.
Estava com sorte. O trocador disse que aquele ônibus só passava de hora em hora. Sentei no último lugar disponível e dei uma checada no naipe dos passageiros. Não havia ninguém com pinta de turista. Tirando alguns pescadores, que eram a única pista de que o ônibus estava indo para uma praia, só tinha “mães de família” e crianças, mas ninguém estava vestido a caráter para o banho de mar. Atravessamos a ponte e pegamos uma estrada que passava por uma mistura de mangue, dunas de areia e muitas palmeiras de carnaúba. Eram os meus últimos dezessete quilômetros de Transpiauí.
Na beira da estrada, entre carnaúbas e mangues, havia muitas casas de sapê. O motorista parou na porta de quase todas elas para que as mulheres descessem com os filhos. Depois de 20 minutos, o ônibus só levava os pescadores e eu. Após cruzarmos algumas dunas mais altas, finalmente avistei o mar do Piauí. Não estava acreditando que faltava pouco para concluir a minha jornada.
A praia é muito extensa. Lá no final dava para ver um farol construído num pontal rochoso e uma pequena vila, com uma dúzia de casas e alguns quiosques na areia. O mar estava dividido entre o azul do oceano e as águas barrentas de um dos rios do delta que desaguava ali por perto. Uma parte estava altamente convidativa para um mergulho, a outra dava aquela impressão de sujeira característica de quase todos os rios.
O lado esquerdo do farol, por onde chegamos, formava uma tranqüila enseada que abrigava muitos barcos de pescadores. Já o lado direito era mais revolto, com muitas ondas. O ônibus parou em uma praça na vila. Quando desci, tinha certeza de que o melhor marco para o final de minha peregrinação seria aquele farol encravado no meio das rochas. Fui caminhando em passos lentos, saboreando aquele vento salgado batendo no rosto. A sensação de tortura que senti no início da viagem, poucos dias atrás, já estava superada. As estradas esburacadas, a má alimentação e o péssimo cheiro do banheiro do ônibus eram uma vaga lembrança.
A praia estava semi-deserta e reforçou ainda mais uma impressão que sempre me acompanhou. Em toda a jornada, me senti como se fosse o único turista do Piauí. Em nenhum momento vi alguém que pudesse estar experimentando as mesmas coisas do que eu. Nenhum sinal de qualquer andarilho usando colar feito com uma concha de vieira. Provavelmente esta foi uma das minhas melhores sensações durante a viagem. Desde o paupérrimo extremo sul do estado, passando por lugares como a Serra da Capivara, Teresina, Sete Cidades e Parnaíba, me senti único. Definitivamente o Piauí é um dos melhores lugares do mundo para este tipo de peregrinação, pois ele permitiu que um espírito pioneiro, mesmo que falso, contaminasse os meus pensamentos. A satisfação deste fetiche absurdo que sempre tive se revelou muito mais proveitosa do que qualquer viagem para um lugar da moda, freqüentado por pessoas que “acontecem e fazem acontecer”.
Ao contrário dos grandes centros de peregrinação espiritual do mundo, onde você se sente obrigado a absorver alguma coisa, o vazio e a falta de compromisso da Transpiauí te deixam à vontade para tirar as suas próprias conclusões, em vez de comprá-las em uma lojinha de souvenir estrategicamente situada ao lado de “marcos” como a catedral Santiago da Compostela, por exemplo. Na Transpiauí não é necessário que aconteça “algo” para que o peregrino se sinta “evoluído”. Ninguém precisa voltar para casa inventando historinhas de “encontros com demônios” ou “busca por espada” para causar inveja nos pobres mortais que nunca tiveram a coragem de sair de sua rotina e se embrenhar em um caminho apenas para serem “tocados em seu âmago” .
Eu saí de casa incrédulo, como se tudo fosse uma grande sacanagem, mas sinto que realmente mudei em alguns aspectos. Passei a me sentir seguro com as coisas que faço no Cocadaboa, pois vi que meu humor picante e minha língua impudica simplesmente brincam, sem qualquer preconceito, com as coisas que acontecem ao meu redor, independente de estar no Piauí ou no Rio.
Alguns idiotas acham que para uma piada não soar preconceituosa só negros podem brincar com os estereótipos negros, ou judeus com judeus, ou piauienses com piauienses. Como se você só pudesse rir dos outros se estivesse ao mesmo tempo rindo de si mesmo. Pura bobagem, pois cruzei o Piauí inteiro e, apesar das brincadeiras, em nenhum momento me senti realmente diferente das pessoas que moram aqui. Estaria desvalorizando o Piauí se não tivesse feito nenhuma piada ou observação cáustica, pois estaria considerando o estado tão deficiente a ponto de decidir poupá-lo de uma coisa que o pensamento “politicamente correto” considera natural quando feita entre as pessoas que possuem o mesmo rótulo social ou religioso que lhes é atribuído.
Sacaneio sim, pois sou igual a um piauiense.
Para quem ainda não se sentiu convencido, recomendo a todos que vão até o Piauí e sigam “O Caminho”. Percorra este estado desde seu mais fudido interior até o seu belo farol na Pedra do Sal. Mesmo que não encontre com um velho sarcástico disposto a lhe dar uma lição de vida, com certeza haverá um momento engraçado quando você poderá rir e dizer para si “Só mesmo no Piauí!”, sem se sentir a pessoa mais preconceituosa do mundo.
Dei meus últimos passos mais do que satisfeito com o meu pequeno farol. Depois de chegar até ele e comemorar solitariamente com uma foto e um sorriso, me premiei com um mergulho e um longo e preguiçoso banho de sol. Fiquei o resto da manhã tomando cerveja num quiosque que, além de mim, não tinha mais nenhum cliente.
Já ébrio, não apenas pelas várias garrafas de cerveja, mas também pelos 3.616 quilômetros que venci para chegar até aqui, concluí que o Piauí é realmente o cu-do-mundo. Como qualquer outro cu, ele causa uma primeira impressão horrível, mas aos poucos, exigindo muita paciência, vai revelando os seus mistérios e dando as suas lições. Quando você o domina, tudo se transforma em uma estupenda e inédita forma de prazer. A sodomia é uma arte, e para apreciá-la é preciso peregrinar pelas trevas até conquistar a “elevação do espírito”.

Extraido do Livro:
Transpiauí, uma peregrinação proctológica
Autor: Mr Manson, Editora: Churros, ISBN: 8598289019, Ano: 2004, Edição: 1.

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